Anterior a todas as religiões, psicologias e filosofias conhecidas, o xamanismo em si é o conjunto de práticas e técnicas arcaicas ligadas à natureza, com o propósito de expandir a consciência para melhor. Sua principal característica é considerar que todas as criaturas do Grande Espírito são irmãs. Os nossos antepassados respeitavam a natureza, prestando atenção aos seus sinais, aplicando suas leis nas suas vidas e atividades, vivendo em harmonia com o meio ambiente.
Os xamãs preservam um notável conjunto de antigas técnicas desenvolvidas ao longo dos séculos, usadas para obter e manter o bem-estar e a cura para eles próprios e para os membros de suas comunidades, possibilitando aos indivíduos aprenderem conscientemente a transpor o aparente abismo existente entre o mundo físico e as esferas da imaginação e da visão. Esse conjunto de práticas e técnicas xamânicas revelam-se de notável semelhança em todo o mundo, mesmo para os povos cujas culturas e tradições são diferentes, e que, há milhares de anos, estão separados uns dos outros por oceanos e continentes.
Sem o nível de tecnologia médica atual, esses povos chamados primitivos tiveram excelente razão para se sentirem motivados a desenvolver capacidades não tecnológicas da mente humana para a saúde e para a cura. A uniformidade dos métodos xamânicos em todas as partes do mundo, da Sibéria até a Patagônia, da China até as Américas, da Escandinávia até a África e a Austrália, sugere que por meio de tentativas e erros os povos chegam às mesmas conclusões.
O xamã é escolhido a partir de um chamado divino, por herança ou por aprendizado. Em qualquer um desses casos, ele teria que passar por experiências iniciáticas e um árduo aprendizado, no qual o futuro xamã experimentava sua própria morte e renascimento, penetrando nos outros mundos, aprendendo a linguagem dos animais, das plantas, das pedras e encontrando os Guardiães e os Mestres das outras dimensões. Abrindo as portas da sua percepção, o xamã recebia os conhecimentos e o poder para ajudar e curar os outros. Ao final, seu corpo é refeito, porém, sempre faltará um ossinho, perdido e jamais encontrado, para dar a ele a dimensão de sua imperfeição e, portanto, de sua humanidade.
Os xamãs não seguem nenhum dogma ou religião, todos acreditam na rede universal de poder que sustenta toda vida. A origem de sua fé reside em sua própria experiência com a natureza. Segundo o xamanismo, todos os elementos do meio ambiente estão vivos e todos possuem sua fonte de poder no mundo espiritual. Pedras, plantas e animais estão carregados de vida e devem receber o devido respeito para a manutenção da harmonia e da saúde. Para os xamãs, todas as formas de vida estão interligadas, e o equilíbrio mutuamente sustentador entre eles é fundamental para a sobrevivência da humanidade. Nosso trabalho no Clã Lobos do Cerrado, em Brasília, consiste em compreender este equilíbrio e viver em harmonia com ele, levando sempre a natureza em consideração. A rede de poder da natureza é o doador da vida e a fonte de toda atividade bem-sucedida.
Com o advento da Revolução Industrial e, um pouco antes, no século 16, com a fundação das igrejas, das empresas e do expansionismo branco, quando culturas nativas foram massacradas, a humanidade distanciou-se da natureza, criando um mundo onde há poluição, violência e desequilíbrios. Vendo a terra apenas como fonte de rendimento e os minerais, vegetais e animais como meios para servir seus interesses, o homem cortou os laços que o ligavam à Mãe Terra, tornando-se solitário, desvitalizado, desencantado e desequilibrado. É, provavelmente, devido à perda desse sentido arcaico de ligação estreita com o universo primitivo interno, que o homem contemporâneo desrespeita a natureza, levando à catástrofe ecológica tanto externa quanto interna.
Todavia, milhares de pessoas procuram resgatar esse elo perdido com a Mãe Terra, restabelecendo seu próprio equilíbrio. Estas práticas xamânicas estão retornando hoje como autêntica força viva, em meios sofisticados como o das terapias alternativas contemporâneas. Tal penetração deve-se também ao interesse que o assunto despertou em estudiosos de outras áreas, como é caso da antropologia, da etnologia, da história das religiões.
A partir da década de 60, o antropólogo americano Michael Harner, ao pesquisar a civilização dos índios da Amazônia Peruana, submeteu-se voluntariamente a uma iniciação xamânica. Nesse processo, ele entrou em contato com o universo do xamã. A partir daí, percebeu que as técnicas multimilenares dos xamãs poderiam ser trazidas ao homem racional e utilizadas para o restabelecimento da energia vital e, conseqüentemente, do equilíbrio psicológico e corporal.
Por outro lado, de forma análoga ao que busca a moderna psicoterapia, a cura xamânica também objetiva o estabelecimento de uma ponte entre o consciente e os conteúdos do inconsciente profundo. Não há, praticamente, diferenças substanciais entre uma postura e a outra. As psicoterapias seriam sistemas formais de pesquisa e cura do inconsciente. No xamanismo, isso ocorre de uma forma natural e empírica, nos moldes consagrados de uma sabedoria multimilenar que a pesquisa moderna vem resgatando.
Na base da técnica xamânica de cura está a retomada do contato com as fontes de energia primordiais: animais, vegetais, minerais e a energia dos quatro elementos, fogo, ar, água e terra. Todas essas energias existem no mundo natural e, em estado latente, no interior de nossa psique. As técnicas tradicionais xamânicas preconizam o uso de substância alucinógenas para produzir o estado alterado de consciente, que será a ponte de ligação entre consciente e inconsciente. Para o homem civilizado, em geral prisioneiro de um sistema neurótico de vida e não habituado cultural e organicamente à ingestão de tais substâncias, a experiência quase sempre produz resultados que põem em risco a saúde.
A grande contribuição de Michael Harner foi criar um método de entrar em estado alterado de consciência sem o uso da droga alucinógena. Harner afirma que o que consideramos realidade subjetiva no estado comum de consciência é realidade objetiva, naquilo que ele batizou de estado xamânico de consciência. Assim, se numa experiência xamânica encontrarmos um dragão, ele terá, para o xamã, realidade plenamente objetiva e não mítica. A partir daí, Harner concluiu que, para se conseguir um efeito objetivo no estado xamânico de consciência, bastaria um estímulo subjetivo no estado comum de consciência. Esse estímulo é o som produzido por batidas rítmicas de tambores e chocalhos, instrumentos tradicionais do xamã.
O primeiro passo que deve ser dado logo após a entrada no estado xamânico de consciência é a descoberta do túnel xamânico. Esse túnel, que corresponde à ponte de ligação entre o consciente e o inconsciente, levará ao mundo xamânico, onde, a nível simbólico, toda a experiência xamânica se desenvolve. A viagem através desse túnel é feita sempre sob o estímulo do som de tambores, e é geralmente precedida por uma dança similar àquela praticada pelos índios.
Ao começar a viajar entre os mundos o xamã deve buscar seus aliados espirituais: guias, mestres, auxiliares e animais de poder. No mundo superior é onde encontramos os nossos mestres e ancestrais, que nos dão conhecimentos, poder, equilíbrio e saúde, visando a nossa evolução como Ser. No mundo inferior encontraremos nosso animal de poder e os animais auxiliares. O primeiro, em termos simbólicos, corresponde à nossa parte animal preponderante. Como todos os símbolos, esse também apresenta uma bipolaridade. Tem um aspecto de energia vital curativa - que, como todo bom anjo da guarda, está sempre disponível para nos ajudar e proteger - e também a sua igual e contrária parte destrutiva.
O animal de poder não é nada mais que um parente de outro reino ou nível energético, confirmando, assim, que todos nós somos irmãos e filhos do Grande Espírito. Neste momento do despertar de uma nova consciência ecológica, é importante lembrar-nos deste parentesco, para evitar a destruição e poluição desses outros planos da existência. Várias outras etapas se sucedem, numa seqüência gradativa que obedece a uma metodologia perfeitamente estruturada. Segue-se, por exemplo, a etapa da busca do animal de cura, que servirá para a autocura e a cura dos outros, a cura à distância, a restauração do poder animal e, entre outros, a busca da parte perdida da alma, numa clara analogia com o trabalho dos psicoterapeutas. A cura xamânica é simplesmente uma ampliação da consciência buscando a mobilização do fator de autocura. Todo arquétipo pressupõe uma contraparte. O curador contém o doente e vice-versa.
Com a prática do xamanismo nós nos tornamos co-criador na vontade coletiva da natureza. Nos tornamos agente da mudança no drama da evolução. Mas do que isso, nos libertamos da ilusão de isolamento e adentramos na realidade da inter-relação de toda vida. O xamanismo é uma jornada mental e emocional, onde tanto o paciente quanto o xamã ficam envolvidos. Através de sua heróica viagem e de seus esforços, o xamã ajuda seus pacientes a transcender a noção normal e comum que têm acerca da realidade, inclusive a noção de si próprios como doentes. Faz sentir aos seus pacientes que eles não estão emocionalmente e espiritualmente sozinhos em suas lutas contra a doença e a morte. Faz com que eles partilhem de seus poderes especiais, convencendo-os, em profundo nível de consciência, de que há outro ser humano desejoso de oferecer seu próprio Eu para ajudá-los. A abnegação do xamã provoca no paciente um compromisso emotivo correspondente, um senso de obrigação de lutar ao lado do xamã para se salvar. Zelo e cura caminham juntos. Finalmente, a prática do xamanismo leva-o, conseqüentemente, a alinhar-se com as forças de cura da natureza. Encontra-se equilíbrio e integração. Sabemos quem somos e para onde estamos indo.
Fonte: Jaguar Dourado
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