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Onilé a Primeira Divindade da Terra.
Os antigos povos que deram origem aos atuais iorubás ou nagôs, de
cujas tradições se moldaram o candomblé no Brasil, cultuavam uma
entidade da Terra, a Terra-Mãe, que recebeu muitas denominações em
diferentes aldeias e cidades que formam o complexo cultural iorubá e
seus entornos principais, entre os quais os jejes mahis e daomeanos e os
tapas ou nupes e os ibos. Esta antiga divindade é até hoje cultuada e
recebe o nome de Onilé, a Dona da Terra, a Senhora do planeta em que
vivemos. Outros nomes da Terra-Mãe são: Aiê, Ilé, Ialé, também Ije, Ale,
Ala, Aná, Ogerê, e mesmo Buku e Buruku. Entre os jejes do Maranhão e da
Bahia é chamada Aisã. Creio que grande parte dos seguidores do
candomblé nunca ouviu falar ou teve apenas vagas referências sobre
Onilé, mas em certos candomblés de nação Keto, que preservam ou
reconstituem tradições que em grande parte se perderam na diáspora
iorubana, pratica-se um culto discreto, mas significativo a Terra-Mãe,
para a qual se canta, ou no início do Sirê ou no final da chamada roda
de Sòngo, a cantiga que diz “Mojubá, orisá/ ibá, orisá/ ibá Onilé”, que
pode ser traduzido como “Eu saúdo o orisá/ Saúdo Onilé/ Salve a Senhora
da Terra”. Onilé é uma divindade feminina relacionada aos aspectos
essenciais da natureza, e originalmente exercia seu patronato sobre tudo
que se relaciona à apropriação da natureza pelo homem, o que inclui a
agricultura, a caça e a pesca e a própria fertilidade. Com as
transformações da sociedade iorubá numa sociedade patriarcal ou
patrilinear, que implicou a constituição de linhagens e clãs familiares
fundados e chefiados por antepassados masculinos, as mulheres perderam o
antigo poder que tiveram numa primeira etapa (um mito relata que, numa
disputa entre Oyá e Ogum, os homens teriam arrebatado o poder que era
antes de domínio das mulheres). Os antepassados divinizados tomaram o
lugar das divindades primordiais e houve uma redivisão de trabalho entre
os orisás. As divindades femininas antigas tiveram então seu culto
reorganizado em torno de entidades femininas genéricas, as Yiá Mi
Osorongá, consideradas bruxas maléficas pelo fato de representarem
sempre um perigo para os poderios masculinos, e vários orisás tiveram
dividido entre si as atribuições de zelar pela Terra, agora dividida em
diferentes governos: o subsolo ficou para Omulu-Obaluaye e para Ogum, o
solo para orisá-Oko e Ogum, a vegetação e a caça para os Odes e Osonyin e
assim por diante. A fertilidade das mulheres foi o atributo que restou
às divindades femininas, já que é a mulher que pari que reproduz e dá
continuidade à vida. Constituir-se-iam elas então em orisás dos rios,
representando a própria água, que fertiliza a terra e permite a vida:
são as Yiagbás Yemonjá, Òsun, Obá, Oyá, Yewá e outras e também Nanã, que
como antiga divindade da terra, representa a lama do fundo do rio,
simbolizando a fertilização da terra pela água. Onilé teve seu culto
preservado na África, mas perdendo muitas das antigas atribuições. Hoje
ela representa nossa ligação elemental com o planeta em que vivemos,
nossa origem primal. É a base de sustentação da vida, é o nosso mundo
material. Embora sua importância seja crucial do ponto de vista da
concepção religiosa de universo, os devotos a ela poucos recorrem, pois
seu culto não trata de aspectos particulares do mundo e da vida
cotidiana, preferindo cada um dirigir-se aos orisás que cuidam desses
aspectos específicos. No Brasil, como aconteceu com outros orisás, seu
culto quase desapareceu. Certamente um fator que contribuiu para o
esquecimento de Onilé no Brasil é o fato de que este orisá não se
manifesta através do transe ritual, não incorpora, não dança. Outros
orisás importantes na África e que também não se manifestam no corpo de
iniciados foram igualmente menos considerado neste País que, por
influência do Kardecismo, atribui um valor muito especial ao transe. Foi
o que aconteceu com Orunmilá, Oduwduwa, Orisá-Oko, Ajalá, além da Yiá
Mi Osorongá. É interessante lembrar que o culto de Osonyin sofreu no
Brasil grande mudança, passando o orisá das folhas a se manifestar no
transe, o que o livrou certamente do esquecimento. O culto da árvore
Iroko também se preservou entre nós, ainda que raramente, quando ganhou
filhos e se manifestou em transe, sorte que não teve Apaoká. Na Nigéria
mantém-se viva a idéia de que Onilé é à base de toda a vida, tanto que,
quando se faz um juramento, jura-se por Onilé. Nessas ocasiões, é ainda
costume pôr na boca alguns grãos de terra, às vezes dissolvida na água
que se bebe para selar a jura, para lembrar que tudo começa com Onilé, a
Terra-Mãe, tanto na vida como na morte. Um mito que já tive o prazer de
contar em outras ocasiões ensina qual são a atribuição principal de
Onilé, como ela está associada ao chão que pisamos e sobre o qual
vivemos nós e todos os seres vivos que formam o nosso habitat, nosso
mundo material. Assim conta o mito: Onilé era a filha mais recatada e
discreta de Olodumare. Vivia trancada em casa do pai e quase ninguém a
via. Quase nem se sabia de sua existência. Quando os orisás seus irmãos
se reuniam no palácio do grande pai para as grandes audiências em que
Olodumare comunicava suas decisões, Onilé fazia um buraco no chão e se
escondia, pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa, com
muita música e dança ao ritmo dos atabaques. Onilé não se sentia bem no
meio dos outros. Um dia o grande deus mandou os seus arautos avisarem:
haveria uma grande reunião no palácio e os orisás deviam comparecer
ricamente vestidos, pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas
do mundo e depois haveria muita comida, música e dança. Por todos os
lugares os mensageiros gritaram esta ordem e todos se prepararam com
esmero para o grande acontecimento. Quando chegou por fim o grande dia,
cada orisá dirigiu-se ao palácio na maior ostentação, cada um mais
belamente vestido que o outro, pois este era o desejo de Olodumare.
Yemonjá chegou vestida com a espuma do mar, os braços ornados de
pulseiras de algas marinhas, a cabeça cingida por um diadema de corais e
pérolas, o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérola. Osòósi
escolheu uma túnica de ramos macios, enfeitada de peles e plumas dos
mais exóticos animais. Osonyin vestiu-se com um manto de folhas
perfumadas. Ogum preferiu uma couraça de aço brilhante, enfeitada com
tenras folhas de palmeira. Òsun escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos
cabelos as águas verdes dos rios. As roupas de Osumarè mostravam todas
as cores, trazendo nas mãos os pingos frescos da chuva. Oyá escolheu
para vestir-se um sibilante vento e adornou os cabelos com raios que
colheu da tempestade. Sòngo não fez por menos e cobriu-se com o trovão.
Óòsàálá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão e a testa
ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio. E assim por diante. Não
houve quem não usasse toda a criatividade para apresentar-se ao grande
pai com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta
beleza, tanto luxo. Cada orisá que chegava ao palácio de Olodumare
provocava um clamor de admiração, que se ouvia por todas as terras
existentes. Os orisás encantaram o mundo com suas vestes. Menos Onilé.
Onilé não se preocupou em vestir-se bem. Onilé não se interessou por
nada. Onilé não se mostrou para ninguém. Onilé recolheu-se a uma funda
cova que cavou no chão. Quando todos os orisás haviam chegado, Olodumare
mandou que fossem acomodados confortavelmente, sentados em esteiras
dispostas ao redor do trono. Ele disse então à assembléia que todos eram
bem-vindos. Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo e que estava
tão bonito que ele não saberia escolher entre eles qual seria o mais
vistoso e belo. Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas
nem sabia como começar a distribuição. Então disse Olodumare que os
próprios filhos, ao escolherem o que achavam o melhor da natureza, para
com aquela riqueza se apresentar perante o pai, eles mesmos já tinham
feito a divisão do mundo. Então Yemonjá ficava com o mar, Òsun com o
ouro e os rios. A Osòósi com as matas e todos os seus bichos, reservando
as folhas para Osonyin. Deu a Oyá o raio e a Sòngo o trovão. Fez
Óòsàálá dono de tudo que é branco e puro, de tudo que é o princípio,
deu-lhe a criação. Destinou a Osumarè o arco-íris e a chuva. A Ogum deu o
ferro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra. E assim por
diante. Deu a cada orisá um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um
governo particular. Dividiu de acordo com o gosto de cada um. E disse
que a partir de então cada um seria o dono e governador daquela parte da
natureza. Assim, sempre que um humano tivesse alguma necessidade
relacionada com uma daquelas partes da natureza, deveria pagar uma
prenda ao orisá que a possuísse. Pagaria em oferendas de comida, bebida
ou outra coisa que fosse da predileção do orisá. Os orisás, que tudo
ouviram em silêncio, começaram a gritar e a dançar de alegria, fazendo
um grande alarido na corte. Olodumare pediu silêncio, ainda não havia
terminado. Disse que faltava ainda a mais importante das atribuições.
Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra, o mundo no qual
os humanos viviam e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o mais que
deveriam ofertar aos orisás. Disse que dava a Terra a quem se vestia da
própria Terra. Quem seria? Perguntavam-se todos? “Onilé”, respondeu
Olodumare. “Onilé?” todos se espantaram. Como, se ela nem sequer viera à
grande reunião? Nenhum dos presentes a vira até então. Nenhum sequer
notara sua ausência. “Pois Onilé está entre nós”, disse Olodumare e
mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava vestida de
terra, a discreta e recatada filha. Ali estava Onilé, em sua roupa de
terra. Onilé, a que também foi chamada de Ilê, a casa, o planeta.
Olodumare disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a
Onilé, pois ela era a mãe de todos, o abrigo, a casa. A humanidade não
sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde ficava cada uma das riquezas que
Olodumare partilhara com filhos orisás? “Tudo está na Terra”, disse
Olodumare. “O mar e os rios, o ferro e o ouro, Os animais e as plantas,
tudo”, continuou. “Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco-íris, tudo
existe porque a Terra existe, assim como as coisas criadas para
controlar os homens e os outros seres vivos que habitam o planeta, como a
vida, a saúde, a doença e mesmo a morte”. Pois então, que cada um
pagasse tributo a Onilé, foi à sentença final de Olodumare. Onilé, orisá
da Terra, receberia mais presentes que os outros, pois deveria ter
oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repousam os
corpos dos que já não vivem. Onilé, também chamada Aiê, a Terra, deveria
ser propiciada sempre, para que o mundo dos humanos nunca fosse
destruído. Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare. Todos
os orisás aclamaram Onilé. Todos os humanos propiciaram a mãe Terra.
E então Olodumare retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo
de tudo por conta de seus filhos orisás1. E assim este mito, de modo
didático e com muita beleza, situa o papel de Onilé no panteão dos
deuses iorubás. Como é estrutural nos mitos, o tempo da narrativa não é
histórico, dando a impressão que os cultos dos diferentes orisás foram
instituídos a um só tempo, num só ato do supremo deus. A narrativa
enfatiza, contudo, a concepção básica da religião dos orisás, isto é,
que cada orisá é um aspecto da natureza, uma dimensão particular do
mundo em que vivemos. Eles são o próprio mundo, com suas forças,
elementos, energias e propriedades, mundo que tem por base Onilé, a
Terra, o planeta que habitamos o nosso lar no universo.
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