Vovó Maria fumegava seu pito e batia seu pé ao som da curimba enquanto
observava o terreiro, onde os cambones movimentavam-se atendendo aos
pretos velhos e aos consulentes. Mandingueira, acostumada a enfrentar de
tudo um pouco nos trabalhos de magia, sabia perfeitamente como o mal
agia tentando disseminar o esforço do bem.
Sob variadas formas, as trevas vagavam por ali também.
Alguns em busca de socorro; outros, mal-intencionados, debochavam dos
trabalhadores da luz. Muitos chegavam grudados no corpo das pessoas,
qual parasitas sugando sua vitalidade.
Outros, por sobre seus ombros, arqueando e causando dores nos
hospedeiros, ou amarrados nos tornozelos, arrastavam-se com gemidos de
dor. Fora os tantos que eram barrados pela guarda do local, ainda na
porta do terreiro e que, lá de fora, esbravejavam palavrões.
Da mesma forma, o movimento dos exus e outros falangeiros se fazia
intenso no lado astral do ambiente, para que, dentro do merecimento de
cada espírito, pudessem ser encaminhados.
Uma senhora com ares de madame se aproximou da preta velha para receber
atendimento. Vinha arrastando uma perna que mantinha enfaixada.
– Saravá, filha – falou Vovó Maria, enquanto desinfetava o campo
magnético da mulher com um galho verde, além de soprar a fumaça do
palheiro em direção ao seu abdome, o que fez com que a mulher
demonstrasse nojo em sua fisionomia.
Fingindo ignorar, a preta velha, cantarolando, continuou a sua limpeza.
Riscando um ponto com sua pemba no chão do terreiro, pediu que a mulher
colocasse sobre ele a perna ferida.
“Será que não vai pedir o que tenho?”, pensou a mulher, já arrependida
por estar ali naquele lugar desagradável. “Vou sair daqui impregnada por
estes cheiros!”
Vovó Maria sorriu, pois captara o pensamento da mulher, mas preferiu
ignorar tudo isso. O que a mulher não sabia era a gravidade real do seu
caso, ou seja, aquilo que não aparecia no físico. Se ela pudesse ver o
que estava causando a dor e o inchaço na perna, aí sim, certamente
ficaria muito enojada. Na contraparte energética, abundavam larvas que
se abasteciam da vitalidade do que já era uma enorme ferida e que breve
irromperia também no físico.
Além disso, uma entidade espiritual, em quase total deformação,
mantinha-se algemada à sua perna, nutrindo, assim, essas larvas astrais.
Para qualquer neófito, aquilo mais parecia um cadáver retirado da tumba
mortal, inclusive pelo mau cheiro que exalava.
Com a destreza de um mago, a preta velha sabia como desvincular e
transmutar toda essa parafernália de energias densas, libertando e
socorrendo a entidade escravizada a ela.
Feitos os devidos “curativos” no corpo energético da mulher, Vovó
Maria, que à visão dos encarnados não fez mais que um benzimento com
ervas e algumas baforadas de palheiro, dirigiu-se agora com voz firme à
consulente:
– Preta Velha até aqui ouviu calada o que a ilha pensou a respeito do
seu trabalho.
Agora preciso abrir minhas tramelas e puxar sua orelha.
Ouvindo isso, a mulher afastou-se um pouco da entidade, assustada com a
possibilidade de que ela viesse mesmo a lhe puxar a orelha.
“Escutou o que pensei? Ah, essa é boa. Ela está blefando comigo.”,
pensou novamente a mulher.
– Se a madame não acredita em nosso trabalho, por que veio aqui buscar
ajuda? Filha, não estamos aqui enganando ninguém. Procuramos fazer o que
é possível, dentro do merecimento de cada um.
– É que me recomendaram vir me benzer, mas eu não gosto muito dessas
coisas…– …e só veio porque está desesperada de dor e a medicina não lhe
deu alento, não foi ilha? – complementou a preta velha.
– Os médicos querem drenar a perna e eu fiquei com medo, pois nos
exames não aparece nada, mas a dor estava insuportável.
– Estava? Por quê, a dor já acalmou?
– É, agora acalmou, parece que minha perna está amortecida.
– E está mesmo, eu fiz um curativo.
A mulher, olhando a perna e não vendo curativo nenhum, já estava pronta
para emitir um pensamento de desconfiança quando
preta velha interferiu:
– Vá para sua casa, ilha, e amanhã bem cedo colha uma rosa do seu
jardim, ainda com orvalho, e lave a sua perna com ela, na água corrente.
Ao meio-dia o inchaço vai sumir e sua perna estará curada.
Não ousando mais desconfiar, ela agradeceu e já estava saindo quando a
preta velha a chamou e disse:
– Não se esqueça de pagar a promessa que fez pra Sinhá Maria, antes
dela morrer…
Arregalando os olhos, a mulher quase enfartou e tratou de sair daquele
lugar imediatamente.
O cambone, que a tudo assistia calado, não agüentando a curiosidade
perguntou que promessa foi essa.
– Meu menino, o que nós escondemos dos homens fica gravado no mundo dos
espíritos.
Essa filha, herdeira de um carma bastante pesado por ter sido dona de
escravos em vida passada e, principalmente, por tê-los ferido a ferro e
fogo, imprimindo sua marca na panturrilha dos negros, recebeu nesta
encarnação, como sua fiel cozinheira, uma negra chamada Sinhá Maria.
Esse espírito mantinha laços de carinho profundo pela madame desde o
tempo da escravidão, quando foi sua “Bá” e, por isso, única poupada de
suas maldades. Nessa encarnação, juntaram-se novamente no intuito de que
a bondosa negra pudesse despertar na mulher um pouco de humildade, para
que esta tivesse a oportunidade de ressarcir os débitos, diante da
necessidade que surgiria de auxiliar alguém envolvido na trama cármica.
Sinhá Maria, acometida de deficiência respiratória, antes de
desencarnar solicitou à sua patroa que, na sua falta, assistisse seu
esposo, que era paraplégico, faltando-lhe as duas pernas.
Deixou para isso todas as suas economias de anos a fio de trabalho e só
lhe pediu que mantivesse com isso a alimentação e os medicamentos. Mas
na primeira vez que ela foi até a favela onde morava o homem, desistiu
da ajuda, pois aquele não era o seu “palco”. Tratou logo de ajustar uma
vizinha do barraco, dando-lhe todo o dinheiro que Sinhá havia deixado,
com a promessa de cuidar do pobre homem.
Não é preciso dizer que rumo
tomaram as economias da pobre negra; em pouco tempo, para evitar que ele
morresse à míngua, a Assistência Social o internou em asilo público. Lá
ele aguarda sua amada para buscá-lo, tirando-o do sofrimento do corpo
físico. Nenhuma visita, nenhum cuidado especial. A madame se havia
“esquecido” da promessa. Eu só iz lembrá-la para que não tenha que
voltar aqui com as duas pernas inválidas. A Lei só nos cobra o que é de
direito, mas ela é infalível. Quanto mais atrasamos o pagamento de
nossas dívidas, maiores elas ficam. Por isso, camboninho, negra velha
sempre diz para os filhos que a caridade é moeda valiosa que todos
possuímos, mas que poucos de nós usam. Se não acordamos sozinhos, na
hora exata a vida liga o “desperta-dor” e, às vezes, acordamos
assustados com a barulheira que ele faz… eh, eh, eh… Entendeu, meu
menino?
– Sim, minha mãe. Lembrei que tenho de visitar meu avô que está no
asilo…
Sorrindo e balançando a cabeça a bondosa preta velha falou com seus
botões:
– Nega véia matô dois coelhos com uma cajadada só… eh, eh…
E, batendo o pé no chão, fumando seu pito e cantarolando, prosseguiu
ela, socorrendo e curando até que, junto aos demais, voltou para as
bandas de Aruanda.
Fonte: Livro Causos de Umbanda Volume 2 – Páginas 37 a 41 – Vovó Benta /
Leni W. Saviscki
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